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Damásio Cardoso

Líder portuário do Rio de Janeiro, Brasil. Um daqueles cujas histórias são contadas no filme “Homens do Brasil”.

O porto do Rio de Janeiro estava envolvido em constantes conflitos e desordem endêmica. Muitos trabalhadores carregavam ou uma pistola ou uma faca consigo. Os roubos e as greves causaram tamanha perda de mercadorias que as companhias de seguro impuseram uma sobretaxa a todas as cargas que passavam pelo Rio.

Damásio Cardoso era um dos líderes da paralização no porto, um motorista de guindaste duro e orgulhoso, nascido no Amazonas e de descendência indígena. Com seu contrincante, Nelson Marcellino, líder de outro frente do porto, os conflitos eram tantos que Damásio esteve a ponto de matá-lo, seguro de que para a resolução deste drama um dos dois deviam perder a vida. O que Damásio não sabia ainda era que Nelson havia conhecido uma maneira nova de resolver as diferenças quando entrou em contato com pessoas do RAM em Santos, durante uma de suas visitas de inspeção.

“Eu alertei Nelson que se ele tentasse trabalhar, isto custaria sua vida. Ajustar contas desta maneira era comum no porto. Eu vim preparado para problema. Adicionei um segundo revólver ao que eu permanentemente carregava, além de uma faca. Levei um grupo de camaradas bem armados ao depósito. Chegando lá eu fui até o Nelson: qualquer movimento da parte dele e eu atiraria.

“Eu esperava uma reação violenta. Para minha surpresa, ele falou calmamente. Contou-me o quanto ele se lamentava por sermos inimigos já que na verdade ambos estávamos do lado dos nossos colegas de trabalho. Mas nós estávamos indo para luta de maneira errada. Ele conversou comigo acerca de uma nova tarefa que aguardava todos os portuários, necessitando da sua união. Para meu espanto, ele chegou a admitir que ele próprio havia cometido erros e que a União dos Portuários do Brasil não era irrepreensível”.

“Damásio não podia acreditar no que estava ouvindo, se perguntando o tempo todo o que estava por trás desta covardia”? Era um truque? E se viu contendo seu ataque planejado. Mas a atitude de Nelson inspirou a um começo de mudança em Damásio.

Em agosto de 1954, Nelson e Damásio voaram para Caux, com oitenta e quatro membros do Rio, Santos, e São Paulo, num avião especialmente fretado pelos Villares e outros industriais. Eles foram com o apoio de diversos ministros de governo, que assumiram a responsabilidade pelos custos da viagem dos delegados de cada um de seus respectivos departamentos, (o Ministro dos Transportes, por exemplo, com relação aos portuários). Esta viagem ajudou a criar novas atitudes, as quais Damásio relatou ao Ministro dos Transportes. Ele também falou sobre isto com o chefe de Estado, Getúlio Vargas, durante uma reunião concedida a uma delegação de trabalhadores portuários. Bem diretamente, Damásio disse ao presidente como, embora no passado ele tivesse caminhado cegamente, ele havia agora decidido sem dúvidas conduzir sua vida livre de compromissos, buscando somente aquilo que estivesse de acordo com padrões morais que ele acreditasse. Ele disse, então, que pretendia lutar para que os estadistas baseassem sua política nos mesmos fundamentos.

Mas o retorno de Damásio e Nelson foi difícil. Todos no porto sabiam da viagem que eles fizeram juntos e de seus pronunciamentos públicos, comprometendo-se a lutar lado a lado para promover estas novas ideias. Isto causou dissensão. Além disso, o custo de vida estava subindo rápido e aquele ano em particular, 1953, terminou sem que os portuários obtivessem qualquer aumento salarial. Eles pediram um aumento de 50%, aceito pela companhia, desde que lhe fosse permito aumentar seus próprios encargos. Os trabalhadores concordaram em esperar pela decisão governamental. Mas o governo atrasou deliberadamente sua resposta, enquanto o Ministro do Trabalho, João Goulart, persuadia o Duque de Assis e sua equipe, com quem ele tinha conexões, a iniciar uma greve em protesto à atitude da companhia. Parecia à Damásio, ainda vice-presidente daquele sindicato, que esta era uma proposta com fins puramente políticos e que ele não poderia deixá-la passar sem contestá-la.

“Eu decidi,” ele disse, "fazer um passeio pelo porto com uma locomotiva de manobra na qual colocamos uma bandeira brasileira com a inscrição" “Boicote à Greve”. Indo de armazém em armazém, nós explicamos os fatos da situação. Quando nós chegamos no galpão 7, a locomotiva foi cercada por um grupo de homens que já estavam esperando e uma briga estourou. Eu fui agarrado e imobilizado enquanto um deles me batia com uma garrafa. Eu acordei no hospital com onze pontos na cabeça, com sorte de estar vivo. Vendo-me cair, um de meus amigos que tinha se afastado, sacou sua arma e gritou, ‘eu atirarei no primeiro que tocar no Damásio novamente’. Infelizmente, alguém correu à minha casa e disse a minha esposa Nair que eu tinha sido morto. Nair, grávida na época, entrou em estado de choque e deu à luz dois meses antes, prematuramente, ao nosso sexto filho. Nossa pequena garota, Angelina, nasceu com as pernas deformadas.”

Dominado pela raiva, Damásio ainda assim se conteve. Se Deus o queria vivo, seria por alguma razão. Ele teria que escolher a obediência, não a revolta. Ele não deveria tentar vingar-se de seu agressor, mas, tão logo ele se recuperasse, fazer dele seu amigo. Isto levou tempo. A cada momento que seu agressor o via, fugia. Por fim, eles se encontraram e se reconciliaram.

Nelson, Damásio, e seus amigos passaram a se encontrar mais frequentemente e a refletir mais profundamente. Eles viram que eles próprios não estavam isentos das coisas das quais acusavam os políticos obscuros. Por exemplo, havia o costume generalizado entre os portuários de levantar mercadorias, particularmente, produtos alimentícios, supostamente para as necessidades de suas famílias, mas, algumas vezes, exigindo caminhões! Um dos grupos queria racionalizar esta prática, reduzindo-a a um nível mais razoável. Ele percebeu que nada mudaria a menos que ele abandonasse todas as práticas juntas, e não demorou muito para que seu exemplo fosse seguido.

Os hábitos não mudam da noite para o dia. Um hábito era nunca sair desarmado. Do momento em que se descobriu que as diferenças poderiam ser resolvidas sem recorrer à violência, estar constantemente armado não era mais uma necessidade. Entretanto, renunciar as armas exigia coragem. “Eu levei algum tempo” lembrou Damásio. “Eu disse a mim mesmo, venda seus dois revólveres. Uma faca será suficiente. Um incidente que poderia ter terminado tragicamente, me levou a renunciar a minha faca também. Um dia, alguns amigos me abordaram fazendo todos os tipos e observações pessoais ofensivas. No início eu consegui me controlar, mas então um deles se tornou tão insultante que eu esqueci todas as minhas boas resoluções, puxei minha faca e cravei no ombro dele.”

Até então, as mulheres haviam sido mantidas distantes das atividades e reuniões de seus maridos. Agora elas se viram envolvidas. Damásio vivia há vinte anos com Nair e eles tinham sete filhos. Mas o seu senso de compromisso nunca tinha ido tão longe a ponto de torná-la sua esposa. Este pensamento lhe ocorreu em uma manhã, regularizar a situação da família perante Deus e o mundo. O casamento aconteceu em 29 de dezembro de 1956. Antes da cerimônia, ele e Nair foram se confessar, ela pela primeira vez em muitos anos, ele pela primeira vez. Ele estava um tanto ansioso. O padre havia permitido um tempo limitado. Como, com o passado dele, ele iria contar tudo? As crianças estavam presentes e de branco no casamento dos pais, todas em fila, de dois a quinze anos de idade, adoráveis. Angelina estava lá, suas pernas se fortaleceram o suficiente a permitir que ela caminhasse com os outros.

Um novo espírito gradualmente se espalhou entre os trabalhadores no porto. Não contentes com o que eles haviam alcançado em casa, os portuários do Rio sentiram necessidade de contar a outros sobre suas conquistas, e eles não se limitaram às fronteiras do Brasil. Em 1956, seis deles incluindo Damásio, foram a Buenos Aires a convite do Ministro do Trabalho da Argentina. Em 1959, eles lançaram um novo empreendimento. Fizeram o filme "Homens do Brasil". Isso permitiu que compartilhassem suas experiências muito mais amplamente. Não aconteceu sem sacrifício. Várias vezes, cem homens renunciaram ao salário de um dia para participar das filmagens.

A versão francesa foi exibida pela primeira vez na França em 23 de março de 1961 em Blanc-Mesnil, um subúrbio industrial do norte de Paris, na presença de Bernard Hardion, recém-retornado de um mandato de sete anos como embaixador no Brasil. Em suas observações introdutórias, o diplomata lembrou as condições desastrosas sob as quais o porto do Rio operava quando ele chegou ao país. Então ele ouviu falar da mudança criada pelos trabalhadores portuários. "Um dia", disse ele, "conheci os protagonistas do filme que vocês estão prestes a ver. Posso afirmar um ponto em particular que é tão extraordinário quanto a própria história. É uma história verdadeira; sem atores, sem ficção; um drama humano vivido por homens que são nossos irmãos. Esses brasileiros, que conheci e amei, encontraram um caminho para a sabedoria e fraternidade. Eles concluíram que suas experiências carregavam uma mensagem que interessaria a outras nações".

Fonte:

- Livro de Daniel Dommels "O Rearmamento Moral na América Latina".

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